A igreja evangélica atual tem origem na Reforma, e ao longo do tempo recebeu a contribuição de diversos movimentos, como anabatismo, puritanismo, pietismo, avivamentos do século 18, sociedades missionárias, fundamentalismo, pentecostalismo clássico e missão integral. O conjunto destes movimentos iniciados com a Reforma é o que conhecemos como protestantismo. Vivemos atualmente sob o impacto do controverso movimento neopentecostal. Foram sopros do Espírito Santo ao longo da história, intervenções de Deus para dentro da realidade humana, com suas instituições, seu poder político e econômico. Nenhum destes movimentos é perfeito -- cada um deles tem luzes e sombras. É um equívoco abraçar algum deles incondicionalmente. A tendência que se observa é abraçar um destes movimentos como a última e definitiva revelação de Deus e excluir os demais, considerando-os inferiores e muitas vezes até hereges.
Ser evangélico hoje significa andar nos passos dos reformadores e destas outras contribuições, seja buscando alguma integração, seja na ênfase de uma só delas. No entanto, não se trata de eleger uma ou outra, mas de discernir o sopro do Espírito, que, de tempos em tempos, renova algum aspecto que foi negligenciado ou esquecido da teologia e da prática de Jesus de Nazaré. Trata-se de julgar e reter o que há de bom em cada uma delas e receber com alegria esta preciosa herança, aprendendo com a história e com aqueles que trilharam o caminho da fé, da esperança e do amor antes de nós.
A Reforma aconteceu no século 16. O que podemos aprender dos primeiros 1500 anos da história da Igreja? Muitos evangélicos esclarecidos dizem: nada. Antes da Reforma só existiam duas igrejas cristãs: a romana e a ortodoxa. Lutero e Calvino eram agostinianos e lemos abundantes citações dos Pais da Igreja nas “Institutas” de Calvino. Precisamos confessar, como evangélicos, nosso preconceito e orgulho. Até hoje, olhamos com suspeita para tudo o que aconteceu no seio da Igreja de Cristo anterior à Reforma por considerar esta contribuição como católico-romana e achar que do catolicismo não pode vir nada valioso.
Durante os primeiros 1500 anos de história da Igreja, o Espírito Santo soprou várias vezes. A espiritualidade clássica engloba a contribuição dos santos e doutores da igreja nos movimentos da patrística, da monástica e da mística medieval, isto é, o vento do Espírito anterior à Reforma.
O que se observa hoje é que alguns protestantes se debruçam sobre este período, a espiritualidade clássica, com o desejo de aprender e integrar na experiência evangélica aquilo que há de bom. Evangélicos como Hans Burki, James Houston, Eugene Peterson, Alister McGrath, Richard Foster, Ricardo Barbosa estão redescobrindo a riqueza da espiritualidade clássica, como contribuição vital para a igreja de hoje. Católicos contemporâneos, como Henri Nouwen, Anselm Grun, Thomas Merton e outros, também buscam resgatar esta tradição. A Comunidade de Taizé, fundada pelo reformado Irmão Roger, tem alcançado muitos jovens na Europa e outros países, com sua proposta de reconciliação, integrando o que há de bom nas tradições ortodoxa, católica e reformada.
É uma falácia achar que a Reforma do século 16, apesar de sua importância fundamental, é o único e definitivo mover do Espírito Santo na história da Igreja e que nada de bom aconteceu nos séculos precedentes. Felizmente, para nós, estes antigos movimentos estão documentados e podemos aprender com eles.
A “multiforme” sabedoria de Deus não é uma experiência de conhecimento que pertence a um indivíduo, a um grupo ou a um movimento. Ela engloba o patrimônio de revelação de Deus por meio da história da Igreja. Ou seja, as muitas vezes que o Espírito Santo revitalizou, renovou, corrigiu, avivou e despertou o povo de Deus de seus desvios e acomodações ao longo dos séculos e através das nações, nas três confissões cristãs: ortodoxa, romana e reformada.
Para isto, há que se vencer o preconceito evangélico, que considera que tudo o que é católico é herético e, ao fazer isto, se autoproclama dono da verdade. Assim rejeita o Pastor de Hermas, Clemente, Justino, Inácio de Antioquia, Orígenes, Policarpo, Pacômio, Antão, Bento, Atanásio, Crisóstomo, Gregório Nazianzeno, Basílio, Agostinho, Bento, Bernardo de Claraval, Francisco de Assis, Tomás de Aquino, Catarina de Siena, Inácio de Loyola, Savonarola, João da Cruz, Tereza D’Ávila, Bartolomeu de las Casas, Tereza de Calcutá e muitos outros. Estou certo de que a leitura dos pais orientais, dos santos místicos e dos doutores do passado e a apreciação do exemplo de suas vidas podem contribuir decisivamente para a igreja do século 21.
E, claro, integrando com a contribuição de John Wycliffe, Jan Huss, Lutero, Calvino, Zwínglio, George Fox, John Bunyan, John Knox, Conde Von Zinzendorf, John Wesley, Jacob Spener, George Whitefield, Charles Finney, Jonathan Edwards, D. L. Moddy, William Carey, Hudson Taylor, David Livingstone, William Booth, Karl Barth, Paul Tillich, Dietrich Bonhoeffer, Martin Luther King, John Stott, René Padilla, Samuel Escobar e tantos outros.
Sim, sou um reformado evangélico: “Sola Scriptura”, “Sola Gratia”, “Sola Fide”, “Solus Christus”, “Soli Deo Gloria”. E aberto para aprender e integrar a espiritualidade clássica em minha experiência cristã. Aprecio e sou edificado com o que aconteceu em Niceia (325), Monte Cassino (529), Assis (1223), Wittenberg (1517), Westminster (1647), Azuza Street (1905), Medellin (1968), Lausanne (1974) e com outros momentos em que o Espírito soprou na história da Igreja. É importante e promissor este diálogo entre a Reforma Protestante e a espiritualidade clássica, integrando o que há de bom nestes movimentos.
• Osmar Ludovico da Silva foi pastor durante trinta anos e hoje dedica-se a dirigir grupos de formação espiritual. Mora com a esposa, Isabelle, em Lauro de Freitas, BA, e participa da Igreja Batista de Vilas do Atlântico. É autor de “Meditatio” e se identifica com a missão integral e a espiritualidade clássica.
Fonte: Revista Ultimato, Edição de setembro/outubro de 2009.
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